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Foto do escritorColetivo Ciganagens

Sem lugar para literatura cigana

Quão bonito é a possibilidade de muitos mundos existindo, um sem pisotear o outro, em cosmovisão. Nós, enquanto povo que se organiza como etnia no território da tradição, temos o modus operandis de pisar bem devagar no solo desse mundo, tomando cuidado com a diferença, pois ninguém deve ser atropelado. Como é interessante a questão de ser povo tradicional, que carrega a palavra “tradição”, historicidade, que contrapõe a falta de história da humanidade universalizada enquanto branca, de constante apagamento com as vivências do passado. Se a consciência de povos Roma fosse um depósito de ira, raiva e maus agouros, e não uma continuação de momentos e tradições, o ressentimento poderia ser cultivado tanto na porta de igrejas protestantes quanto de católicas. Mas, como a motivação continua sendo o propósito existencial da etnia, assim como de afirmação identitária, posso declarar fielmente, como defesa cultural, o esquecimento, tão bondoso para com nossa saúde mental. O esquecimento como ferramenta de defesa e permanência nesse mundo. Não guardaremos rancor. Lembraremos, pois a memória é proteção, mas sem um sentimento de vingança. Não pretendo generalizar, pois não tenho o desejo de representar toda a minha etnia. Seria impossível fazer tal tipo de representação, mas, tentarei escrever a partir da minha percepção pessoal e local da minha etnia.



Agora adentrando o título deste escrito, o que cerceia a memória Roma contada em primeira pessoa dentro do contexto literário no Brasil? Olhando criticamente para a história da literatura brasileira, os povos Roma faziam e fazem parte da cultura e da sociedade, não há um vácuo nisso. Mas, sempre como personagens, nunca por trás da caneta que conta a narrativa. A história Roma é geralmente escrita por não ciganos, e tal narrativa é conduzida de forma contrátil, tornando difícil apurar sua autenticidade nesse sentido. É sabido pelas comunidades Roma há milênios, que o sujeito nomeado por nós como “gadje”, nunca teve muitas palavras bonitas para nos nomear. No Brasil, lugar de minha fala, as palavras utilizadas são em sua maioria, mistério e exotização, como se fôssemos portadores de tradições e costumes que fogem do entendimento da sociedade majoritária, mas, admirados por representarmos algo distante dessa realidade tida como oficial. Pessoas da etnia, muitas vezes ficam à margem em locais literários e exóticos esquecidos. E assim é fortalecido o personagem estereotipado na cultura da sociedade brasileira: a cigana sensual e o cigano ladrão. Sem rosto, sem identidade definida, sem sexualidade e sem fala. Representações estereotipadas de Roma como povos violentos, ateus, indomáveis, desocupados e vadios, que entraram no imaginário ocidental há vários anos, e não deixam de ser fortalecidos reincidentemente. A diferenciação construída é alienada à medida que a diferença está pautada na inferioridade e na delimitação de um reino restritivo e estranho para o outro. Sob o argumento dos benefícios da expansão do processo de uma suposta civilização racional, formas de vida mais naturais e em rede foram subalternizadas sem representar uma questão moral para as políticas oficiais envolvidas. A literatura tem importância pois ela marca o que é contado e disseminado a respeito das pessoas. Hoje em dia eu sei que o Curupira, personagem do chamado “folclore” brasileiro, não é o mal encarnado que assola pessoas na floresta. Pelo contrário, por meio de amigos e literatura escrita por pessoas indígenas, pude perceber que ele é um certo protetor das florestas contra a saga de destruição das nossas matas. E o lugar que aprendi que o Curupira era um ser maldito, foi na escola. Tenho o privilégio de aprender e viver com outros povos tradicionais no Brasil, e essa relação é essencial para ter consciência de um mundo muito mais gigantesco do que o que aprendemos como naturalizado. A literatura escrita sobre povos Roma no Brasil é um lugar não da construção das subjetividades, mas da assimilação. Existe apenas um destino: escrito pelos brancos (hegemonia). Esse polo ativo hegemônico, que não quer ser apenas uma concepção de mundo, mas afirmar-se enquanto única concepção de mundo. Nem a nossa pronúncia e línguas são passíveis sem julgamentos. E falar, oralmente, como tem sido nossa tradição por anos, é suportar o peso de uma civilização. Os povos Roma entendem nitidamente que não precisam saber mais do que precisam. Nossas vidas concretas são deixadas apenas com as experiências e a imaginação de seus ancestrais que os mais velhos do grupo ainda lembram. Isso sem mencionar que oralidade é uma eficiente defesa. A história grafada na literatura em si, não é uma solução, mas faz parte da hegemonia gadje. Os Roma e sua história são seres vivos, como a sua língua, o vento e o fogo, em constante movimento, com consciência, vontade e determinação própria. Não seria necessário que os mortos falassem nos livros se essa história não fosse utilizada para se criar uma hegemonia racista. Seus ancestrais não tiveram e ainda não têm o desejo de desenvolver uma língua, na qual, portanto, incluem elementos de rigidez gadje. Assim como povos indígenas, para conosco, há a insistência em chamar nossas tradições e costumes de folclore. Como se nossos modos de vida fossem uma mentira ou mito e não tivéssemos inteligência e perspicácia para viver a “vida verdadeira”, tida como civilizada. A literatura é crucial para santificar tais questões. Se tu lê no livro que a cigana é exótica, lê o futuro na bola de cristal, é desonesta e uma figura do pecado, como contrapor tal hegemonia, se nós não temos o espaço do contraditório? Há a persistência de uma confusão proposital que esses escritores fazem em seus relatos. Cigano é referência de algo que não me vejo no Brasil. Os povos Roma parecem ter pouco do conteúdo do cidadão brasileiro esperado, pois são retratados enquanto ladrões, quiromantes, vagabundos e miseráveis. É como olhar no espelho e não se ver. Truduá Dorrico, uma referência indígena no Brasil, que faz um incrível trabalho de apoio, divulgação e publicação de literaturas dos vários povos indígenas aqui, diz que existe uma memória engessada no passado sobre povos tradicionais. Sim, é como se nós, povos de etnia, nem tivéssemos presente e futuro. A colonização não acaba, pois ela se ressignificou. O colonialismo é a consequência da colonização. A colonização é um evento datado, da perda de valor da vida do outro. Por isso não se sabe a história dos povos não brancos. Não há interesse. Demonstrar a história e memória dos povos Roma em primeira pessoa presente é um divisor de águas para uma etnia marginalizada. Na literatura, escritores não hegemônicos podem não ter nenhum tipo de reconhecimento pelo seu trabalho que visualize sua identidade cultural, e não recebendo a devida atenção e nem valorização dos espaços acadêmicos. Mas, quando a semente desses trabalhos se unem, se declarando “sou de tal povo e existo”, tudo se modifica. Isso está acontecendo com povos indígenas aqui no país. Já temos até editora indígena. Em contrapartida, se tu pesquisar na Amazon, essa rede maior de venda de livros online, com opções de literatura sobre povos Roma, escrito por nós mesmos, vai encontrar no máximo dois livros. Todo o resto que menciona povos Roma, é escrito por gadje. É um escândalo. O sistema literário brasileiro na contemporaneidade não engloba e nem reconhece a etnicidade Roma enquanto portadora de relevância para escrever sua própria história. Minha prima Marcilânia, moradora da maior comunidade Kalon sedentarizada no Brasil, possui diversos contos não publicados escritos. Mas sempre isso: não publicados. Tenho o desejo e o empenho de tornar essa publicação uma realidade. Ainda farei isso, pois sempre fomos nós por nós mesmos. Com esse artigo, meu intuito foi contar sobre a elitização existente no meu país, em que aceitam nós, povos Roma, como objeto da literatura, mas não como autores. Essa hegemonia deveria perceber que fazemos parte da brasilidade e da formação desse país, temos muito ainda a contribuir e gostaríamos de espaço. A marginalidade não é uma opção de vida Roma, mas nos destinada. Que a literatura brasileira possa aprender mais.


Texto; Sara Macêdo Kali

Ilustração ; Danillo Kalon

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